quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Relato de Viagem - Yara e Nilo em Mezzano - 2009

No trem
De repente, árvores! Parecia que o trem entrara...
em um túnel recoberto por folhas de vários tons claros de verde,
fechando as janelas e, ao mesmo tempo, iluminando-as, assemelhando-se a um brilhante papel de parede em movimento. Onde estavam as colinas e ciprestes, que nos acompanharam durante tantos dias? Outros túneis, agora de pedras e concreto, começaram a escurecer o vagão. Então avistamos as montanhas. E os despenhadeiros. E pontes. E um rio com pedras, às vezes caudaloso e forte, às vezes com a água só pressentida entre as pedras. O trem fazia curvas suavemente e as lindas paisagens se sucediam, como se tivéssemos entrado nas páginas de uma revista ou numa tela. E era real!

Chegamos, assim, à estação da cidadezinha, que nos pareceu tão familiar. Com suas casas antigas em tons de bege e amarelo claro, o calor de um belo dia de verão, o cheiro de café, nos acolheu nessa parada sabendo que o ponto final da viagem estava a poucos quilômetros, conforme antecipava meu coração. Quase em casa.

A ferrovia, as pontes, os arcos dos túneis, as pedras, as montanhas, o rio avistado a cada curva em que os trilhos se aproximavam do precipício e as árvores se distanciavam ... Poderia ser Morretes e a Serra do Mar, no Estado do Paraná, região sul do Brasil. Era Feltre e as Dolomitas, no Vêneto, norte da Itália.

Na metade da tarde, descemos do trem na estação de Feltre, uma cidade de quase vinte mil habitantes. Porém, só na volta, percorrendo-a no ônibus vindo de Mezzano em uma manhã de sol, pudemos perceber que era mais que uma vila, como antes nos parecera. O primeiro contato foi acolhedor, apesar da tempestade que vinha das Dolomitas fechar o céu aos poucos e a chuva despencar quando pegamos o último ônibus, às 17h 20min. Andiamo a Mezzano? Si!

Em frente à estação ferroviária encontra-se uma praça, onde há um monumento ao emigrante. O homem representado leva apenas uma pequena mala para a grande aventura. I bagagli: sua força, sua coragem, seu trabalho, seu desejo.

Olhando em volta, sinto saudades de algo que não vivi, que não fui eu que perdi...

No ônibus

O semblante do motorista não deixa dúvidas de que é mais uma viagem rotineira. Para nós, no entanto, é A Viagem. Chove forte no caminho sinuoso das Dolomitas, entre Feltre e Mezzano. Olho sem medo para a beira da estrada, onde pequenas muretas nos separam de abismos. Olho para as montanhas e agradeço a Deus por estar aqui.

Às vezes, o ônibus precisa parar para dar passagem a outro veículo, como acontecia na Estrada da Graciosa, quando íamos à praia na minha infância. Fa poco... Sinto-me criança novamente e confio em quem está na direção, como fazia com meu tio... Mas meu marido é realista e deixa transparecer sua preocupação. Você me trouxe para uma cidade no fim do mundo , fala com a “autoridade” de quem está vindo de Londres, Paris e Roma... Para mim, este é o ponto central da nossa viagem. É o encontro da nossa origem, dos Bonat, Trevisan, Borsato, Vicelli, de todos os imigrantes que partiram do Trentino e do Vêneto, dos quais recebemos como herança, entre tantas coisas valiosas porque imateriais e duradouras, talvez também esse desejo de retornar e estimular todos os sentidos ao pisar nesta terra.

Che pioggia! Uma senhora entra no ônibus, toda molhada, porém sorridente, conversa com o motorista e senta no banco à nossa frente. As cidadezinhas se sucedem, nomes em pequenas placas que mal conseguimos ler. Dove siamo? Non so. Pergunto à simpática senhora e digo que precisamos descer em Mezzano, no Albergo Salgetti. Ela, prontamente, fala com o motorista. Grazie, signora! Mas eu reconheceria a cidade, certamente. O ônibus pára em frente ao hotel. I bagagli? Si! O motorista, sempre sério, desce na chuva para retirar as malas do bagageiro. O ônibus parte. Estamos em Mezzano!

Do outro lado da via Roma, movimentada neste horário, encontra-se o hotel. A signora Délia nos recebe sorridente: Trevisan Yara? Mia mamma era Bonat!

Sinto-me em casa.

Foto 01 A chegada na Estação de Feltre.
Foto 02 Bandeira do Trentino.
F0t0 03 Bandeira da Itália.

Foto 04 rua 2.foto 05 Mezzano e Yara.

Foto 06 casa 4.
Mezzano.

O Vale de Primiero está situado no Trentino e é constituído por seis cidades: Fiera di Primiero, Imer, Mezzano, Siròr, Tonadico e Transacqua.
Mezzano e Imer são cidades contíguas, com um número total de habitantes em torno de três mil. Possuem casas com grandes floreiras, ruas limpas, paisagem de cartão postal. A via Roma, continuação da via Nazionale, divide as cidades em duas partes, e as ruas perpendiculares cortam a montanha.

À esquerda, no sentido Imer-Mezzano-Fiera di Primiero, sobe-se, por exemplo, para ir à igreja, à Macelleria Bonat, à casa de Floriano Nicolao, à Rua Dom Luigi Bonat, às prefeituras. À direita, se desce para os campos de futebol e para a Igreja de San Giorgio, patrono de Mezzano, na piazza Monsenhor Orler. Mais abaixo, corre a Torrente Cismon.

No cemitério, localizado junto à igreja, há muitas lápides com o sobrenome Bonat, além de outros tão conhecidos através das nossas pesquisas: Bettega, Orler, Svaizer, Cosner, ...

Na Via S. Fosca, o pessoal da Macelleria e Gastronomia Bonat , Luigi Valline à frente, nos atende com muita simpatia. Gostam de saber que somos brasileiros, descendentes de italianos. Informam que compraram a macelleria (açougue) da família Bonat há alguns anos.

O Albergo Salgetti é ótimo! E, agora, meu marido fala com a mesma autoridade: é a melhor comida entre todas que provamos na viagem! Concordo e repasso esse elogio ao pessoal do hotel. Todos se esforçam para nos atender e entender...

A mãe da signora Delia chamava-se Maria e era filha de Francesco Bonat e Domenica Orler. O hotel foi fundado pela família, que não possui parentesco direto com a nossa, conforme Delia constatou ao ver a árvore genealógica. E como soa bem nosso sobrenome, paroxítono, com o “a” aberto e o “t” mudo bem perceptível!

Depois de tantos dias caminhando no verão da Itália, com mais de 30º, estamos num local com uma temperatura agradável, que cai à noite. É muito bom passear pelas ruas desta cidade tranquila, procurada por pessoas que querem descansar, fazer tratamento para a saúde nas Dolomitas ou vêm praticar esportes, como ciclismo e esqui, conforme a estação.

O hotel possui duas paredes com fotos de equipes de atletas que escolheram o local para concentração e treinamento. Também observamos que, entre os hóspedes, havia alguns grupos de idosos. Magari, quiçá, numa próxima viagem, façamos parte de um grupo assim...

No espírito desse meu relato e inspirado em Mário Quintana, José Maria escreveu:

As ruas de Mezzano, ao ouvirem seus passos, saberão reconhecê-los, mesmo após tanto tempo. "Por que demorou?", a cidade perguntará. Mas é uma pergunta amistosa, a mesma que uma mãe faria a um filho seu após longo desencontro.

foto 07 Casa em Mezzano-Imèr.foto 08 rua da cidade.
foto 09 ponte 1.
foto 10 ponte 2.
foto 11 ponte e igreja.


Susete Moletta.

Salve, Susete! Grazie tanto!

Essa amiga, tão recente e tão querida, foi ao nosso encontro em Mezzano. Levou Maria José, uma simpática brasileira que também mora em Bassano del Grappa. Levou um delicioso almoço e um strudell de maçã feitos por ela. Levou-nos a um lindo passeio pelas cidades vizinhas a Mezzano: Siror, Fiera di Primiero e San Martino di Castrozza. Fizemos um piquenique nas montanhas (un pranzo al sacco), como é o costume na região. Susete levou até jaquetas para nos proteger do frio! Presenteou-me, ainda, com um mapa do norte da Itália. Nele pude ver a mudança no relevo e na vegetação que tanto me impressionaram durante a passagem do Vêneto para o Trentino.

Susete porta la luce!

Sua fluência na língua italiana facilitou a comunicação principalmente nas prefeituras de Mezzano e Imer, bem como na conversa com o historiador e escritor Floriano Nicolao, que, de forma simples e gentil, nos recebeu em sua casa, na via San Francesco.

Pessoas especiais aparecem na nossa vida em momentos que se tornam especiais. Tivemos por testemunha de um desses momentos simplesmente o magnífico Pale di San Martino...

foto 12 Pale di San Martino.

foto 13 Floriano, Susete e Maria José.
foto 14 Yara e Floriano.
E as pesquisas genealógicas?

Ferragosto mezzanese. Isso significa que, em agosto, as pessoas estão viajando, em férias. Portanto, viagem perdida para nós, pois não conseguimos falar com a signora Ornella, secretária da prefeitura de Mezzano, e o signor Alberto Cosner, historiador, que forneceram para a minha prima Suzete Bonat de Mello, no ano passado, importantes informações sobre nossa família. Viagem perdida? Jamais.

Floriano Nicolao estava me esperando, graças a uma carta mandada por José Maria. No encontro, mediado por Susete Moletta, entreguei a ele um certificado da prefeitura de Piraquara, recebido em 2008 durante a festa dos 130 anos da imigração trentina ao Paraná. Na lista de homenageados consta a família Bernardin (da minha bisavó materna) e a família Nicolao. Na sala da casa do sr. Floriano há um retrato do Monsenhor Bernardin, que vive nos EUA. Mostrei fotos de nossa família e falei sobre os descendentes dos ramos brasileiro e francês, observando que não temos informações sobre Giovanna Bonat, que foi para os EUA com o marido, Pietro Orler.

Por que Pietro Antonio e Giorgio Bonat, ao invés de acompanhar os demais trentinos de Morretes para a Colônia de Santa Maria do Novo Tirol, em Piraquara, seguiram para o Estado do Rio Grande do Sul? Essa é a pergunta que nos fazemos há muito tempo e que foi repetida na ocasião.

Apresentei a árvore genealógica organizada pelo sr. Alberto e comparamos com a que foi enviada pelo próprio Floriano para José Maria. Atento e interessado, Floriano quis ficar com uma cópia. Fomos até a prefeitura de Imer onde, a partir dos nomes dos filhos do terceiro casamento de Simone Bonat, com Teresa Bond, poderiam ser localizados os descendentes que permaneceram em uma das cidades. No entanto, obtivemos a informação que “non sono piú a Mezzano, sono sparsi”, estão residindo em Trento e Roveretto.

Na prefeitura de Mezzano, deixei para ser entregue à srª Ornella uma cópia da carta de apresentação que recebi gentilmente de Ivanor Minatti, presidente do Circolo Trentino de Curitiba. Na carta, também está sendo pedido algum documento que contenha a data de saída dos irmãos Bonat para o Brasil, que seria 1878, segundo o sr. Alberto informou à Suzete. A princípio, obtivemos a resposta que não existe um registro da emigração nas prefeituras, portanto precisamos saber qual a fonte em que o sr. Alberto se baseou.

Susete Moletta comentou que, por ordem de Napoleão Bonaparte, nas cidades dominadas pela França na época do império, era feita uma “scheda di famiglia”, como ela descobriu ao fazer as pesquisas que originaram seus livros . Nesses documentos constam informações sobre as famílias, anotadas em grandes folhas.

Nos microfilmes da igreja dos mórmons, descobri nos registros de nascimento em Mezzano que, no final de 1700, a casa da família Bonat era a de número 48. Porém, não constava o nome da rua. Susete sugeriu que, posteriormente, enviasse um e-mail para a srª Ornella, perguntando se há uma planta da cidade daquela época, na qual se possa localizar a casa.

A internet poderá auxiliar na exploração dessas fontes de trezentos anos? Esperamos que sim!
Deixei também na prefeitura de Mezzano uma pasta contendo informações sobre a família Bonat para ser entregue à srª Ornella e ao sr. Alberto, que havia feito essa solicitação à minha prima. Voltei com o endereço de ambos para futuros contatos.

Em Mezzano-Imer, as famílias eram conhecidas pelo sopranome, ou seja, o apelido do sobrenome ou menda. O apelido dos Bonat, segundo o sr. Alberto informou à Suzete, era “naine”, cujo significado para o sr. Floriano seria “giovane” (jovem). E esse parece ser um adjetivo adequado para o estado de espírito que envolve o aprender e o compartilhar, que vivenciamos intensamente durante a viagem, de forma especial em Mezzano.
Percebo que, se não levarei novidades para a pesquisa, deixarei uma parte de nossa história, a que foi construída por Pietro, Giorgio e Giacomo depois que saíram de Mezzano.

foto 15 Mezzano - Igreja di S. Giorgio.
foto 16 pia batismal - batizou os Bonat.

A volta no trem

Arrivederci, Mezzano. Damos o sinal para o ônibus parar em frente ao Albergo. Um longo caminho de volta a Curitiba nos aguarda, viajando em dois ônibus, dois trens e dois aviões, durante mais de 30 horas. Mas não penso nisso no momento da partida. Quero impregnar meus olhos com a vista deste vale até ver as colinas e ciprestes novamente, quando saberei que saí do Trentino.

No trem, ocupamos um banco em frente a dois jovens. Há vários estudantes no vagão (que se chama carrozza). Eu e meu marido viajamos de costas e, enquanto filmo a paisagem, não posso deixar de pensar o quanto essa posição tem de simbólica. Olho para trás, para o que passa, para o Trentino que fica. As cidades, os túneis, as pontes, o rio, as montanhas... O passado, ressignificado. Os jovens olham para frente, para o futuro.

Se olharem pela janela, poderão antecipar algumas coisas no caminho, enquanto eu me surpreendo várias vezes, seja com uma bela vista inesperada, seja com a entrada na escuridão de um túnel. Mas sempre será preciso olhar, estar atento, desejar ...

Yara


Fotografias de Yara e Nilo Trevisan.

foto 17 a partida na estação de Feltre.
foto 18 estrada.foto 19 estrada 2.
Foto 20 Yara "emigrando".
Notas:
1. “No fim do mundo”: pesquisando na internet sobre o Pale di San Martino, descobri que o escritor Dino Buzzati, nascido em Belluno, provavelmente teve essa região como inspiração para escrever o romance "O Deserto dos Tártaros", um dos preferidos do meu marido. Uma interessante e inesperada associação...

2. Mais informações sobre as cidades, fotos e links em www.comuni-italiani.it.

5. Floriano Nicolao é autor de:
- “La chiesa di San Silvestro”, 
-“Le Chiese di San Giovanni e Santa Romina nel territorio di Mezzano”, 
-“La chiesetta della Madonna della Neve sul Monte Vederna”. 
Escreveu a introdução para o livro “Colônia Imperial Santa Maria do Novo Tirol da Boca da Serra”, dos irmãos Antonio Tomaz e Ariel J. Thomaz.

6. Susete Moletta é autora dos livros “Da Itália para o Brasil – a história do casal da Capelinha da Água Verde” e “Italianos no Novo Mundo - História, Imigração, Genealogia, Heráldica”, esse em parceria com seu primo Antonio Sergio Palu Filho.

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